A questão da normalidade.
A ideia de normalidade é muito difundida em nossa sociedade, embora poucos saibam realmente o que isto significa. Não é raro ouvirmos frases como: “isso não é normal”, “o normal seria…” ou “você não é normal”. Mas, afinal, o que é ser normal?
Poderíamos dizer que algo normal é aquilo que se enquadra nos padrões socioculturais de uma determinada época, contudo a questão deve ser mais aprofundada, principalmente quando pensamos na relação entre psicopatologia e normalidade.
É certo que alguns comportamentos ou estados mentais de grande intensidade e longa duração não são difíceis de serem enquadrados como patológicos, mas a grande questão é: qual o limite entre o que é normal e o que é patológico? A resposta para essa pergunta implica em uma definição do que é saúde e o que é doença mental (o que não é nada fácil de se definir) e apresenta desdobramentos em várias áreas.
Em medicina e em psicopatologia, há vários critérios de normalidade e anormalidade, que variam de acordo com as diferentes visões filosóficas ou ideológicas do profissional.
A seguir apresentarei alguns desses critérios:
– Normalidade como ausência de doença: este é um critério bastante equivocado, por ser absolutamente redundante e por definir a normalidade por aquilo que ela não é (definição negativa), ao invés de considerar o que ela supostamente seja.
– Normalidade ideal: baseia-se em normas socialmente estabelecidas sobre o que é sadio. É muitas vezes uma forma arbitrária, dogmática e doutrinária de estabelecer um ideal de normalidade.
– Normalidade estatística: baseia-se, como o nome diz, em dados estatísticos. Fenômenos que são vistos com maior frequência são considerados normais. Este critério também é falho, pois o que é mais frequente não é necessariamente mais saudável.
– Normalidade como bem-estar: este critério foi estabelecido em 1946, pela Organização Mundial da Saúde. A partir daquele ano, a OMS considera a saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente como ausência de doenças. Esta categorização é também alvo de criticas, por ser muito imprecisa, uma vez que é muito difícil definir objetivamente o que é bem-estar, além de ser um ideal tão utópico que poucas pessoas poderiam ser consideradas normais ou saudáveis.
– Normalidade funcional: para este critério um fenômeno é considerado anormal ou patológico a partir do momento que gera sofrimento para o próprio indivíduo ou para seu grupo social.
– Normalidade como processo: aqui não há uma definição estática de normalidade, pois tal conceito é definido levando-se em conta as mudanças decorrentes do desenvolvimento psicossocial, as crises ou modificações típicas de certas faixas etárias.
– Normalidade subjetiva: este critério leva em conta a percepção que o indivíduo tem de sua própria condição. Esta caracterização também é falha, pois um indivíduo em fase maníaca, por exemplo, sente-se muito saudáveis e felizes, quando, na verdade, apresentam um transtorno mental grave.
– Normalidade como liberdade: esta conceituação deriva de uma perspectiva fenomenológica e existencial de saúde mental, na qual saúde caracteriza-se pela liberdade transitar sobre o mundo e sobre o próprio eu, sendo que doença mental seria a falta de liberdade.
– Normalidade operacional: trata-se de uma conceituação assumidamente arbitrária na qual define-se o que é normal e o que é patológico e trabalham-se operacionalmente a partir dessa conceituação prévia.
A definição de normalidade e psicopatologia não é nada fácil, porém é essencial para o tratamento, uma vez que este deve basear-se em uma determinada definição do que é a uma doença. Assim, se observamos uma disfunção química, devemos recorrer a um tratamento farmacológico ou se há uma dificuldade de adaptação social, a psicoterapia seria mais indicada. Um fato importante a ser considerado é que o diagnóstico não encerra a questão sobre o que é normal ou patológico, mas sim orienta a forma com tratarmos o problema.
Talvez agora você pense melhor antes de dizer que “fulano não normal” e perceba como temas comuns do nosso cotidiano podem ser muito complexos!
DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed, 2008.
SILVA, M. M. A saúde mental e a fabricação da normalidade: uma crítica aos excessos do ideal normalizador a partir das obras de Foucault e Canguilhem. Interação em psicologia. Curitiba, p. 141-150, 2008.
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